Escreve Romano Guardini em seu livro O Espírito da Liturgia (p.45-46):
Surge aqui porém uma dificuldade muito sensível. Dificuldade de ordem geral, nascida da relação entre o indivíduo e a coletividade. A comunidade espiritual, como qualquer outra, exige do indivíduo duas coisas. Em primeiro lugar um sacrifício: na medida em que age como membro da comunidade, o indivíduo deve renunciar a tudo quanto só diz respeito a si próprio, com exclusão dos demais. Deverá como que deixar-se a si mesmo pelos outros, sacrificando à comunidade uma parte de sua autonomia e sua independência. Depois disso, uma contribuição ativa: solicitar-se-lhe-á que faça seu um conteúdo de vida infinitamente largo, a saber, a comunidade, que ele ai se expanda, e dele tome consciência de um modo familiar e vital.Conforme o tipo próprio do fiel, esta exigência poderá tomar uma expressão diferente. Poder-se-á acentuar mais o conteúdo objetivo da vida espiritual da comunidade: as idéias que a integram, a ordem dos meios e dos fins, as leis, regras e prescrições a cumprir, os direitos e deveres, etc., e então o, sacrifício e a contribuição ativa acima referidos tomam um caráter objetivo. A individualidade deverá renunciar suas próprias idéias e orientações. Cabe-lhe seguir as intenções e os caminhos da liturgia. Nela deverá abandonar a sua autonomia; deverá rezar com os outros em vez de seguir a sua própria iniciativa; obedecer, em vez do livre governo de si mesmo; conservar-se na ordem, em vez de vagar à vontade. A função do indivíduo vai mais longe: “ realizar” o mundo das idéias litúrgicas. Terá de sair do círculo de suas idéias habituais e fazer seu um mundo espiritual infinitamente mais rico e mais amplo; terá de superar os seus objetivos pessoais para adotar os fins educativos da grande comunidade humana litúrgica. Assim é que ele terá de participar de práticas alheias às suas necessidades particulares do momento; pedir graças que não lhe interessam diretamente; súplicas que ele deverá dirigir a Deus na oração como se fossem suas, ainda que distantes dele, ditadas pelas necessidades da coletividade; deverá (e isto torna-se inevitável em face do complexo de gestos, imagens e orações que é a liturgia) associar-se a práticas cujo sentido não percebe, ou só percebe parcialmenteSurge aqui uma dificuldade particularmente sensível para o homem de hoje, para quem é tão duro sacrificar a própria autonomia. Ele que tão prontamente se deixa inserir no mecanismo da ordem econômica e civil, recusa com igual susceptibilidade e paixão toda lei que não diga respeito às necessidades imediatas de sua vida espiritual. O que a liturgia pede aqui é, em uma palavra, a humildade. A humildade como renúncia, ou seja, o abandono da própria soberania. E a humildade como ação, ou seja, a aceitação de um conteúdo de vida espiritual que nos é apresentado como que de fora e que transcende o círculo da existência própria do indivíduo.