Ensina Romano Guardini em seu livro O Espírito da Liturgia (p.77-79):
A vida da Igreja universal é nucleada por essa dualidade. Nela, encontra-se antes de mais nada a imponente estrutura dos fins práticos, encarnada no direito canônico, na constituição e na administração da Igreja. Tudo aqui é um conjunto de meios convergindo para um fim único, manter o funcionamento do grande maquinismo que é a administração eclesiástica. Para julgar uma estrutura dessa natureza, começa-se aqui indagando se ela serve eficazmente o fim comum, e com o menor dispêndio possível de tempo e energias. Nessa vasta organização de trabalho tudo é determinado pelo espírito prático.A Igreja oferece-nos entretanto uma outra face. Sua vida apresenta um outro domínio em que ela se encontra livre do critério de finalidade no sentido estrito. É a liturgia. Por certo que também aqui encontramos uma trama de fins práticos, que são como que a base da estrutura. Assim é que os sacramentos, por exemplo, têm por missão comunicar-nos determinadas graças. Mas essa missão, tomada num sentido estrito, pode ser preenchida de maneira muito sumária. A dispensação dos sacramentos em caso de urgência nos oferece a imagem de um ato litúrgico resumido à pura finalidade prática. Pode-se dizer que na liturgia cada ato, cada oração, tem por fim o desenvolvimento espiritual do fiel. Entretanto, ela não possuí nenhum plano pedagógico intencional e predeterminado. Para perceber a distinção, compare-se o transcorrer de uma semana do ano eclesiástico com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Nestes tudo está minuciosamente pesado e disposto em vista de um determinado resultado, cada prática, cada oração, e até as pausas na meditação, convergem para a conversão da vontade. Nada disso existe na liturgia. O fato da liturgia não ter nenhum lugar nos exercícios espirituais é significativo. Também ela deseja formar, não porém por um método educativo deliberado e calculado, mas criando uma atmosfera espiritual bem estruturada, na qual a alma se possa desenvolver. A diferença é a mesma que entre um campo de ginástica, no qual cada objeto, cada movimento, é calculado, e a floresta, o campo aberto. Lá, uma formação bem explicita, aqui, vida na natureza, crescimento interior com ela e nela. A liturgia cria um vasto mundo, pleno de rica vida espiritual e deixa a alma mover-se e desenvolver-se nele. Essa abundância de orações, atos e pensamentos, o modo pelo qual o tempo se enquadra no ano eclesiástico, tudo isso se torna incompreensível se se lhe aplica o puro critério da finalidade prática. A liturgia não possui “ finalidade prática”, ou pelo menos não pode ser compreendida unicamente do ponto de vista dessa finalidade. Ela não é um meio que se emprega para atingir um determinado objetivo, mas — até um certo grau pelo menos -— ela é. sua própria finalidade. A liturgia não é um degrau para um fim situado fora dela, mas um mundo de vida que repousa em si mesmo. Isto é importante. Perceba-se esse fato e não mais se procurará encontrar na liturgia toda espécie de. intenções educativas, que podem sem dúvida ser introduzidas nelas, mas. que lá não se encontram essencialmente.