Escreve Romano Guardini em "O Espírito da Liturgia" (p.40-41):
Não menos rico é o patrimônio de cultura da liturgia. Percebe-se o trabalho secular que nela depositou o melhor de seu bem. Plenitude da expressão verbal; variedade de idéias e conceitos; abundância como que arquitetônica de elementos de beleza, desde a brevidade dos versículos e a delicadeza finamente trabalhada das orações, até a artística estrutura das Horas do breviário ou da Santa Missa — e tudo isso culminando finalmente no conjunto do ano eclesiástico. Nesse complexo colaboram elementos de ordem ativa, narrativa e lírica. O estilo das diversas partes muda cada vez: a limpidez do Próprio do Tempo, a misteriosa riqueza do Ofício de Nossa Senhora, a graça dos ofícios das Virgens Mártires da Igreja primitiva. Aqui vem juntar-se todo o domínio do gesto e da ação litúrgicos, dos objetos do culto, dos vasos e das vestes sagradas, da arquitetura, da escultura e da pintura, da arte do canto e do órgão.
De tudo o que precede, depreende-se uma lição capital para a vida espiritual. É que a religião necessita da cultura. Por cultura entendemos aqui a síntese de todos os valores criados pelo esforço do homem e tendentes a formar e a ordenar a vida: ciência, arte, instituições sociais, etc. No nosso caso, a função da cultura é apossar-se do tesouro de verdades, instituições e atividades espirituais que Deus deu ao homem na Revelação, abri-las a todos por meio de um trabalho contínuo, extrair-lhes o conteúdo, pô-las em contacto com a variedade da vida. A cultura é incapaz de criar uma religião, mas fornece a esta o meio de desenvolver plenamente a sua abençoada eficácia. Tal é o sentido exato do antigo preceito: Philosophia micilla theologiae — a filosofia é a serva da teologia. Esse preceito é válido para toda cultura. A Igreja sempre regrou por ele a sua ação. Assim por exemplo, ela sabia perfeitamente o que fazia quando prescreveu e mesmo impôs à ordem de São Francisco, transbordante de forças e estímulos religiosos, a ciência, um certo nível de vida exterior, uma certa capacidade de aquisições materiais etc. Desse modo foram-lhe asseguradas as fundições de sanidade e fecundidade no decorrer do tempo. Homens isolados, pelo menos durante um curto período de entusiasmo, podem dispensar-se da cultura. É o que provam os começos das ordens eremíticas no Egito, os começos das ordens mendicantes, é o que provam os santos de todos os tempos. Mas a regra geral é que, para manter fecunda a vida espiritual é necessário um grau elevado de cultura. Desse modo ela conserva a sua mobilidade, limpidez e largueza de coração e se preserva dessas estreitezas e extravagâncias malsãs que frequentemente encontramos unidas à vida espiritual. A cultura dá à religião a possibilidade de se exprimir, ajuda-a a ver-se a si mesma com clareza, a distinguir o essencial do acessório, o meio do fim, o caminho do objetivo. A igreja sempre condenou toda iniciativa contra a ciência, a arte, a propriedade etc. A mesma Igreja que insistiu de modo tão forte sobre o “único necessário”, e que no ensino dos conselhos evangélicos tanto frisa o desprendimento e o sacrifício total em vista da salvação eterna, deseja que a vida espiritual permaneça impregnada do sal salubre da cultura nobre e verdadeira.