Em um artigo datado de 2011, o autor do extinto blog Otakismo comenta sobre o fenômeno Moe e a dinâmica dos relacionamentos no Japão. O que naquela época o espantou como esquisitices próprias do Japão, hoje já se disseminou por todo mundo:
Recorri ao trabalho acadêmico Exploring Virtual Potential in PostMillenial Japan de Patrick Galbraith para conhecer a opinião de especialistas japoneses sobre o fenômeno. O trabalho é extenso e trago como amostra apenas a visão do filósofo Honda Touru, que está de acordo com o conteúdo já publicado nesse blog, acrescentando alguns toques pessoais para melhor contextualização.De acordo com Honda, moe é um amor imaginário. A satisfação afetiva no atual Japão só pode ser encontrada pela maioria das pessoas no campo imaginário, pois o amor que está em voga no Japão hoje é um resultado da interação entre a cultura milenar japonesa e a monetarização do amor pelo capitalismo e pela mídia, o que torna o modo amoroso praticado hoje no Japão como algo acessível apenas para uma minoria com alta renda e aspectos físicos convencionados lá como belos. Lembremos, o amor romântico simplesmente não existia no Japão até o século XIX, ele foi totalmente importado do ocidente (o que existiam eram os casamentos de conveniência - omiai - ou os homens que entravam pela janela da garota/mulher). O amor típico japonês é o do respeito mútuo, não das emoções afloradas.Portanto, o amor romântico aos moldes ocidentais foi vendido ao Japão da forma mais literal possível, pela propaganda. Sempre que ele é mencionado nesses moldes, está atrelado a uma mensagem de consumo, onde o Valentine's Day é o exemplo mais claro. [...]Vejam a situação. O amor moderno japonês é alimentado por uma rede midiática e marqueteira que incentiva o abraço ao romantismo ocidental para alavancar o consumo, mas ao mesmo tempo, a sociedade japonesa nega veementemente a possibilidade de casamentos não convenientes, isto é, com pessoas sem um bom salário e um bom diploma e as vezes, sem apelo estético tolerável. No ocidente é mais aceitável ver alguém do alto se submeter a alguém sem origem (ou muito feio) por alguma afinidade subjetiva. No Japão não, pelo menos não como aqui.Nas décadas de 70 e 80, no auge da prosperidade material e da apologia ao consumo, criou-se um entrelaçamento estreito entre amor romântico e dinheiro, desenvolvendo aquilo que os japoneses chamam de "love market", processo que vem alienando os japoneses do romance. Na intenção de fugir da capitalização do sentimento romântico e dar espaço ao amor "puro e verdadeiro" (ocidental por excelência), muitos jovens estão buscando refúgio no mundo bidimensional, que separou o desejo da realidade. A relação dos japoneses como personagens bidimensionais, bonecas ou coisas do gênero, nasce, dentre outros diversos fatores, de uma tentativa de encontrar um suposto amor verdadeiro num país de amor capitalista, onde o sentimento está abaixo da posição social, da conta bancária ou da beleza superficial. A situação é irônica, pois o refúgio deles é um universo extremamente lucrativo para empresas que buscam fugir da crise econômica vendendo artigos fetichistas para essa legião Otaku, claro, por preços abusivos. [...]A relação com representações materiais ou imaginárias está substituindo a relação interpessoal. A recessão da economia piorou ainda mais a estratificação do romance e alienou mais o jovem japonês dotrabalho, dos estudos e da família, situação que facilita o fato dos japoneses não estarem mais dispostos a pagar o preço de uma relação real, em nome de uma relação unilateral e imaginária, supostamente mais verdadeira e pura, e convenientemente menos trabalhosa.Esses caras simplesmente não querem mais o terror de se responsabilizar por qualquer coisa que seja. Se recusam a trabalhar em grandes empresas para evitar o stress e se contentam com bicos que são bem remunerados no Japão (enquanto a economia do país sofre com o ciclo vicioso no qual está encalhado faz duas décadas), se recusam a ir atrás de mulher porque é trabalhoso demais e a situação demanda convenções sociais que ele não quer partilhar com ninguém. [...]Muito mais comuns são os eroges, jogos eletrônicos de simulação de encontros. Você mantém relações sociais com uma ou mais personagens a partir de escolhas dentro de opções pré-determinadas pelo jogo (por exemplo: A) Abraçá-la a força B) Pedir para abraçá-la C) Ir embora friamente). A variação de combinações é tamanha, que com o mesmo jogo é possível chegar a mais de uma centena de finais diferentes. A situação é desconfortável. O jogador é o único a tomar decisões, ele escolhe o destino de todos os atos do casal (as personagens reagem, mas um bom jogador sabe exatamente, pela experiência, conseguir o que quer) o que evidencia uma relação de amor unilateral. Ao mesmo tempo o jogador julga manter com sua personagem uma relação de amor puro e verdadeiro (enquanto faz de tudo para levar a personagem para a cama virtualmente). Há altas doses de pureza e perversão nessa situação.Moe, portanto, é um resultado do estágio avançado do capitalismo japonês, onde os jovens se desconectam da realidade e encontram novos caminhos de construção e expressão da relação amorosa. Uma resultante da maturidade da sociedade japonesa, talvez madura até demais que já começa a cheirar mal e apresenta pontos de bolor.